Porto Príncipe, meu Porto
 



Cronicas

Porto Príncipe, meu Porto

Bantu Augusto Silva


A não ser por um galo incomodativo que ainda insiste em cantar às nove da manhã, tudo o mais ressoa silêncio a minha volta. Silêncio do calor sufocante que anuncia os temporais. Ainda não li as notícias. Ainda não sei de nenhum outro ataque das gangues na madrugada. Ainda não saí na varanda para ver se alguma fumaça sobe em algum ponto entre as montanhas, indicando ações amanhecidas dos grupos armados. Me sinto esfumaçado na minha compreensão do mundo. Acordo numa leve ressaca de um rum haitiano que bebi em solidão ontem à noite. Acordo às nove da manhã e há um longo sábado pela frente. Longa é a dor da humanidade. Dor e humanidade caminham juntas como imprescindíveis uma a outra. Como uma tremedeira que se afeiçoou a mão e não pode mais largá-la. É preciso levantar, cuidar das higienes matinais, verificar a segurança das ruas e sair para comprar carne para hoje e amanhã. A constante falta de energia não permite o luxo de geladeiras ligadas todo o tempo. Quando além de pouco, o básico é luxo, tem algo de muito errado na vida. Tão errado quanto bússola quebrada.

Espero encontrar carne nas prateleiras do mercado. Em tempos de peyi lock tudo falta. E o que há, tem os preços elevadíssimos. Os piores são os da gasolina. O galo segue cantando. Não por que precise mais anunciar a manhã. Mas porque sabe que estou na cama e tenho preguiça de me levantar. E seguro que vai cocoricá até me ver na varanda. Aí ele terá a certeza que me venceu. Por isso decido levantar. É um galo vizinho mas que parece cantar sobre minha cabeça, tão perto ecoa. Os tiros também ecoam durante a noite.

Porto Príncipe tem uma urbanidade de poucos edifícios. E ainda um aspecto de efeito pós terremoto. Uma cidade em reconstrução. Muitas casas sendo levantadas aqui, ali e acolá. Pesadas, como se já temessem outro terremoto por vir. As gangues são um terremoto de outra causa. Um sismo humano que explode no hipocentro da alma coletiva danificada na construção das sociedades.

Porto Príncipe tem sua urbanidade expressa em ruas apertadas e longas, palpitantes de carros e motos, um trânsito aparentemente desgovernado. Não há semáforos, nem placas, nem faixas de pedestres. Um tenso e intenso exercício de atenção e atrevimento. E lixo, muito lixo. Sem coletas, sem cuidados, abertos ao céu. E os vendedores, feirantes e transeuntes se espremendo entre as montanhas de lixo, os carros e o que pode haver de calçadas. Numa dessas vendedoras, eu paro uma e outra vez para comprar um milho assado, uma fruta-pão, até um peixe frito. São Paulo não tem lixo assim nas ruas, mas as suas ratazanas me enchem de pavor. Gigantescas, mais parecem leopardos cinzentos e podres. E tem uma danação de pombos. Ah, que alívio, aqui não há esses ratos voadores.

Mas Porto Príncipe é uma urbanidade entre montanhas, belas montanhas. Muito verde, muita árvores. Há lugares que têm pouco lixo na rua, como essa onde moro. Ruas mais bem-apanhadas, de casas melhores, de pessoas de mais condições. Não moro aqui por desejo. Mas por segurança. Parece, até agora, que as gangues não atacam esses espaços. Mas da minha varandinha, vejo ao longe, casas penduradas nos morros, como as favelas do Rio de Janeiro. Como toda a cidade é montanhosa, as alturas desses morros se dividem entre ricos e pobres. Dizem que os ricos moram mais alto e que nas chuvas seus lixos são descidos pelas enxurradas, causando podridão nos que vivem mais ladeira abaixo, os pobres. É nas áreas dos pobres onde, exatamente, as gangues mais atuam, disputando territórios. De lá, saem para roubar um banco, liberar um presídio, atirar nos aviões.

Porto Príncipe é uma urbanidade que se mede por encruzilhadas. É a própria cidade de Exú, que também existe por essas bandas de cá. Aqui se chama Kafou, palavra que quer dizer "encruzilhada" em Kreyól, e que deriva de carrefour, que também quer dizer encruzilhada, em língua Asterix. Eu que até agora achava que Carrefour era só uma rede de supermercado muito presente no cenário brasileiro que é racista e mata negros. Que quando eu vi, pela primeira vez, um supermercado dessa rede em Brasília em 1986, eu li Care Four (leia com pronúncia em inglês e você vai entender a minha ignorância normanda). A maior kafou de Porto Príncipe é a Kafou Ayewopò, ou seja, a Kafou Aeroporto, e está dominada pelas gangues. E isso é simbólico porque é lá que o povo organizava suas grandes manifestações de luta pela vida no Haiti. Vontade que o povo haitiano sabe muito bem exercer, lutar pela vida. Talvez nenhum outro povo lute tanto e tão forte pela vida como a gente do Ayiti. Mas hoje a kafou ayewopò é zona de morte. Exú não anda mais por lá. Ele acompanha seu povo na fuga.

Porto Príncipe tem uma urbanidade que também se expressa nas suas praças. Ainda que malcuidadas, são praças de ir e estar, não fosse o medo. Não se pode ir com tranquilidade ao Champ de Mars ver o museu que abriga subterraneamente a história da região, nem gozar da bela vista da cidade desde o Restaurante Observatório. Nem comprar belos artesanatos e artes.

Ah, Porto Príncipe é uma urbanidade que tem praia, pois ela descansa no azulado Mar do Caribe. Desde minha varanda vejo ele, o mar. Está perto de mim mas tão inalcançável! Outra vez: também é área controlada pelas gangues. Entristeço por não poder me banhar nele, saltar ondas e saudar Mãe Iemanjá, que muito a contragosto, se distanciou dessas águas, e que neste momento, desde a Baía de Todos os Santos olha para o Golfo de Gonaives com tristeza.

Mas enfim, digo e repito, reforço e resisto no meu respeito e amor, Porto Príncipe tem uma urbanidade de poucos edifícios, semblando uma gostosa cidade de interior do Recôncavo Baiano onde, pese seu momento agora, tudo o mais são casas e galos. E também cães na madrugada. Aqui onde moro, tenho o luxo de escutar quase todas a noites uma orquestra sinfônica de cães que com latidos, uivos e gemidos diversos, que não nos deixa dormir de ensurdecedor que chega a ser.

Mas bem, acordo e é preciso sair para comprar a carne do dia. Com certeza trarei também outra garrafa de rum haitiano, que é muito bom, pois há um longo sábado pela frente, nessa cidade desse povo tão cara de Bahia. Mas Porto Príncipe não é mais um Porto Seguro. Mas é aqui que estou atracado e vou sendo feliz, com minha alma de marinheiro rebobinado, sonhado portos Príncipes, Seguros, Felizes, Alegres, Louises, Mathurins. E Portos da Barra.

 

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